quinta-feira, novembro 21, 2024

Demarcando Telas: O cinema indígena no Brasil

Sim, existe cinema indígena e está espalhado por todo o Brasil. Talvez você não soubesse disso porque no dia a dia estamos rodeados de filmes internacionais e nacionais que fazem parte do que podemos chamar de “cinema comercial”. É importante que pensemos o contexto do cinema indígena no Brasil, afinal eles que estavam aqui antes de todos nós. Para começar, eu te convido a refletir sobre como tudo isso começou no campo da sétima arte.

Cineasta Divino Tserewahú em processo de filmagem

Historicamente a produção audiovisual indígena brasileira é marcada por expressar a ideologia e a estética dos colonizadores, a começar pelas representações descontextualizadas dos indígenas desde cerca de 1910. A partir de então, esses filmes produzidos pelos não indígenas vêm contribuindo para a imagem estereotipada de selvagens, primitivos e exóticos, afastando-lhes de suas singularidades individuais e coletivas. E isso acabou resultando em visões distorcidas que situam os povos indígenas em um passado histórico como pessoas “primitivas” e “selvagens”. Nesse momento você poderia pensar “mas por quê?” e eu te explico.

Tudo começou lá no século XIX, na independência do Brasil em relação a Portugal, momento em que o Estado brasileiro se baseava em valores europeus de progresso e superioridade, ou seja, mesmo que estivéssemos “independentes”, deu-se continuidade ao processo de colonização. Nesse mesmo século surge o cinema e é claro que também não ficou de fora da questão colonial. Se analisarmos os filmes nacionais produzidos no começo do cinema, percebemos que a maioria sofria influência europeia e norte-americana e por isso acabavam enaltecendo ambas as indústrias, mesmo que de forma implícita. E, claro, isso contribuiu para que acontecessem as representações estereotipadas dos povos indígenas no audiovisual. Quer exemplos de filmes que descontextualizam os povos indígenas? Assista “Casei-me Com um Xavante” (1955), de Alfredo Palácios, “Como Era Gostoso o Meu Francês” (1971), de Nelson Pereira dos Santos, e se quiser exemplos mais recentes, é só lembrar das telenovelas da Rede Globo “Uga-Uga” (2000-2001) e “Novo Mundo” (2016).

Indígenas estereotipados em “Casei-me Com um Xavante” (1955), de Alfredo Palácios

Esse cenário começou a mudar ao final do século XX, quando os povos indígenas se apropriaram da câmera e passaram a se autorrepresentar (como deveria ter sido desde o início). Isso se deu graças a iniciativas próprias de povos indígenas em todo o mundo, bem como incentivos de projetos, resultando em diversos realizadores indígenas na arte cinematográfica. No Brasil, os povos Mebêngôkre-Kayapó (PA), por exemplo, começaram a se apropriar da câmera no final da década de 1980. Posteriormente outros povos também, como os Mbyá-Guarani, Maxakali, Kuikuro, entre outros. Aqui ressalto o projeto Vídeo nas Aldeias e sua importância para o desenvolvimento do cinema indígena no Brasil.

O Vídeo nas Aldeias foi fundado pelo antropólogo e indigenista Vincent Carelli em 1986 e é um projeto que, segundo o próprio site oficial, é precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil e objetiva, desde o início, apoiar as lutas dos povos indígenas para fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e de uma produção compartilhada com os povos indígenas. Na primeira década do projeto, os cineastas não indígenas produziam e assinavam os filmes a partir das demandas das comunidades indígenas, mas foi em 1997 que o projeto se tornou uma escola de cineastas indígenas e passou a organizar oficinas de realização e montagem em aldeias de todo o Brasil.

Takumã Kuikuro realizando filmagem

 

Mulheres indígenas do Coletivo Kiriri de Cinema, da Bahia, gravando o filme “Mirandela Kiriri”

E então, finalmente, os indígenas puderam realmente se autorrepresentar, afinal somente eles entendem, vivem e sentem a força da própria cultura. Na câmera, perceberam a possibilidade de poder registrar suas práticas e costumes como modo de guardar suas memórias e, também, de visibilizar sua cultura como forma de resistência. A apropriação da câmera, a aprendizagem, o aperfeiçoamento de técnicas, as filmagens e o contato interétnico promovido pelo equipamento videográfico possibilitaram a passagem pelo processo em que passam de objetos para sujeitos da produção. Hoje os cineastas indígenas possuem um papel ativo no audiovisual, que vem abrindo novos caminhos e possibilidades de autorrepresentações indígenas a partir de seus próprios pontos de vista, vivências e experiências.

O cinema indígena é tão forte atualmente que o Brasil é considerado um dos grandes centros de produção cinematográfica indígena. E se você acha que essas produções são parecidas com tudo o que você já viu no cinema comercial, você está enganado. Cada povo possui suas particularidades no modo como filmam e como lidam com a câmera, o que faz com que o cinema realizado por eles seja de uma riqueza e singularidade imensa. Se você assistir aos filmes indígenas é provável que lhe cause certa estranheza, caso esteja acostumado a assistir apenas programas televisivos, filmes e séries de plataformas de streaming e afins.

Isso pode acontecer porque nós, do lado de cá, estamos muito acostumados a abordar as temáticas do ponto de vista de nossa própria cultura, inclusive com influências europeias e norte-americanas, como já falado mais acima. Então é importante que pensemos que a mídia indígena traz muitas inovações no modo de abordar certos temas, pois são filmes em que cada povo usa a câmera de um modo específico e vinculado às suas experiências culturais. O interessante é que se tivermos um olhar apurado podemos perceber que seus filmes nos fazem refletir e questionar pressupostos ocidentais que foram estabelecidos ao longo dos anos no cinema e no audiovisual (ao final da coluna listei alguns filmes para você assistir).

 

Cineasta Isael Maxakali gravando em Minas Gerais

O cinema indígena vem crescendo tanto que hoje temos até coletivos de cinema indígena, como o caso do Coletivo Beture Cineastas Mebêngôkre, um movimento de jovens cineastas Kayapó com diferentes aldeias, que busca dar visibilidade à cultura e à luta política de seu povo. Também há o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, ativo desde 2007. Além disso, diversos filmes indígenas já passaram (e ganharam) em festivais de cinema nacionais e internacionais, inclusive hoje existem festivais de cinema completamente voltados para filmes indígenas, o que mostra o espaço considerável que os povos nativos do país têm ocupado. Podemos dizer que o cinema indígena começa a modificar a história colonial, pois suas produções estão fortemente ligadas às suas próprias realidades identitárias, contrapondo a maneira como eram representados antigamente.

Historicamente sujeitos a múltiplas formas de violência e discriminação, deixo aqui a reflexão do empoderamento étnico indígena por meio das mídias audiovisuais. Faz-se cada vez mais necessário difundir os conhecimentos e vivências indígenas por meio de suas produções e saber que seus filmes não existem apenas como meio de informação de seus povos, pois é muito mais que isso, é cultura, memória, luta e resistência. Agora eu te convido a assistir, de mente aberta, alguns filmes indígenas brasileiros que estão disponíveis na internet:

 

 

Espero que essa coluna tenha feito você refletir um pouco sobre a importância desses cinemas tão necessários atualmente. Mergulha nesses filmes e qualquer coisa me conta aqui embaixo. Até a próxima.

 

Por Brener Neves

Brener Neves é graduado em Produção Audiovisual pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Mestre em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e atualmente cursando doutorado em Cinema e Audiovisual também pela UFF. Trabalha com produção audiovisual realizando vídeos no projeto TV Lepete da UEA e com pesquisa sobre o cinema realizado pelos povos indígenas

 

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